Por que existem tantos incêndios na Cinemateca Brasileira?

Por: Maria Eduarda Negreiros Gonçalves – aluna de graduação em Cinema na UFF.

Você sabia que a Cinemateca Brasileira já sofreu cinco incêndios em seus 74 anos de história? Localizada na cidade de São Paulo, a Cinemateca Brasileira é a instituição de cinema mais antiga do Brasil, sendo responsável pela preservação do maior acervo cinematográfico da América Latina. O seu acervo constitui um registro histórico precioso e insubstituível, distribuído em mais de um milhão de documentos e 250 mil rolos de filmes. Desses 250 mil rolos, mais de mil foram perdidos somente no incêndio de 2016, extinguindo mais de 700 títulos. Ao longo desse texto, você vai descobrir o porquê de tantos incêndios existirem em uma instituição tão importante como a Cinemateca Nacional.

Você sabe o que é um flipbook? Ele é um livro pequeno com desenhos que se modificam levemente de página em página para que, quando se desfolhe rapidamente, crie a impressão de movimento (Figura 1). Os filmes que assistimos nas telonas funcionam da mesma forma: várias fotografias exibidas a uma certa velocidade geram uma imagem em movimento. Mas, antigamente, as fotografias não podiam ser tiradas com a câmera do celular como fazemos hoje em dia. Antes da fotografia digital ser criada, os materiais audiovisuais eram capturados através de uma película (Figura 2) que, quando sensibilizada pela luz, fazia registro de uma imagem. Essa película é constituída por uma base plástica que, durante muito tempo, foi composta por um material altamente inflamável: nitrato de celulose. Os rolos de filmes preservados na cinemateca nada mais são do que um conjunto de diversas películas cinematográficas. Dos 250 mil rolos preservados, 2500 são compostos por nitrato de celulose e se não forem armazenados corretamente, podem se deteriorar ou até mesmo entrar em um processo de combustão.

O nitrato de celulose não foi usado somente para compor as películas cinematográficas. Na verdade, ele foi o primeiro plástico a ser descoberto. Ele é um material muito importante, tendo substituído o marfim utilizado nas teclas de piano, por exemplo. Apresentando características como alta inflamabilidade e solubilidade, o nitrato de celulose tem a capacidade de derreter e de ser moldado em diferentes objetos. No caso do cinema, ele foi capaz de se esticar nas compridas fitas de película. Entretanto, trata-se de um material muito instável. As bolas de bilhar produzidas por esse material, por exemplo, foram a causa de diversos acidentes: algumas delas explodiram por conta do impacto gerado entre elas somado ao uso do cigarro durante os jogos. Atualmente, esse material não é mais utilizado na produção de películas justamente pela alta inflamabilidade, tendo sido substituído pelo acetato de celulose que, mesmo não sendo inflamável como o nitrato de celulose, é um material muito instável e de fácil deterioração. Por conta disso, ele foi posteriormente substituído pelo poliéster. 

Embora o acetato de celulose seja o mais encontrado nas coleções, o nitrato de celulose ainda existe em grande quantidade. Justamente por ser o único material utilizado para a base plástica dos filmes de 1895 até os anos 50, importantes registros históricos e cinematográficos o possuem em sua composição. Existente desde a década de 30, o poliéster é um plástico sintético desenvolvido justamente pela necessidade de um material mais estável e, no caso do cinema, de mais fácil conservação. Existe em baixa quantidade nas cinematecas pois foi somente nos anos 90 que passou a ser significativamente utilizado. 

No que diz respeito à conservação dos nitratos, a temperatura e a umidade do ar estão muito ligadas à deterioração dos filmes. O recomendado é que a temperatura seja constante e de 20ºC. Já a umidade relativa do ar precisa estar entre 20% e 30%. A monitoração dos materiais precisa ser constante para que, se encontradas falhas ou deteriorações, medidas possam ser tomadas imediatamente para que outros danos não sejam causados. Todos os rolos de filme composto por nitrato de celulose precisam ser identificados e preservados separadamente, além de estarem sempre sob observação já que a inflamabilidade do nitrato aumenta conforme o material é deteriorado. Além disso, o nitrato de celulose decomposto libera gases de óxido de nitrogênio que podem deteriorar outros filmes, por isso a sua preservação precisa ser feita a parte dos outros filmes. Mesmo os rolos compostos de outros materiais, quando deteriorados, precisam ser armazenados em ambientes isolados. Por conta dessas especificidades, os rolos de filmes precisam ser testados para que o seu reconhecimento seja feito e ocorra a armazenagem correta. 

Em adição a todas estas complicações referentes ao material que compõe parte dos acervos da cinemateca, existe um grande descaso no que diz respeito à sua preservação. O atraso ou mesmo o não recebimento das verbas destinadas à manutenção desencadeia em altas precariedades nas locações da instituição, fazendo com que todos esses cuidados necessários não sejam completamente atendidos justamente pela falta de recursos. 

E aí? conhecia essas informações? Compartilhe o texto com um amigo e apoie as instituições do cinema nacional! 

Glossário

Nitrato de Celulose	Primeiro plástico a ser produzido. Pertence à classe dos ésteres, sendo produzido a partir da celulose da madeira e do ácido nítrico concentrado
Acetato de Celulose	Fibra obtida através dos línters do algodão ou da celulose da madeira e tratada com uma mistura de ácidos e anidridos acéticos.
Poliéster	Fibra sintética produzida através do petróleo, é tecnicamente um plástico.

Referencias:

FISCHER, Monique C.; ROBB, Andrew. Indicações para o cuidado e a identificação da base de filmes fotográficos. Rio de Janeiro: Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos, 2001. 

BRANCO CRUZ, Felipe. Preservação de filmes incendiados na Cinemateca é complexa, diz químico. UOL, 2016. Disponível em: https://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2016/02/03/preservacao-de-filmes-incendiados-na-cinemateca-e-complexo-diz-quimico.htm. Acesso em: 14 de agosto de 2023.

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Cinemateca começou como clube e pegou fogo 4 vezes. Veja cronologia. Notícias R7, 2021. Disponível em: https://noticias.r7.com/sao-paulo/cinemateca-comecou-como-clube-e-pegou-fogo-4-vezes-veja-cronologia-01042023. Acesso em: 14 de agosto de 2023.

Cinemateca Brasileira passa a ser gerida pela Associação Roquette Pinto, gestora da TV Escola. GOV BR, 2018. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/cinemateca-brasileira#:~:text=A%20Cinemateca%20>. Acesso em: 14 de agosto de 2023.

GATTI, BEATRIZ. O que é a Cinemateca Brasileira e por que seu acervo é tão precioso. Revista Galileu, 2021. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2021/07/o-que-e-cinemateca-brasileira-e-por-que-seu-acervo-etao-precioso.html#Com%. Acesso em: 14 de agosto de 2023.

Link das imagens:

RANGEL, JULIANA. IMS Paulista oferta curso de Flipbook online e gratuito. Click Museus, 2021. Disponível em: https://clickmuseus.com.br/ims-paulista-oferta-curso-de-flipbooks-online-e-gratuito/. Acesso em: 23 de agosto de 2023.

DE OLIVEIRA, MAURÍCIO. A lanterna mágica e a era pré-cinema. Cinema em Foco, 2021. Disponível em: https://cinemaemfoco.com/a-lanterna-magica-e-sua-influencia-no-surgimento-do-cinema/ . Acesso em: 23 de agosto de 2023.

Fogo na Cinemateca em SP: veja fotos e vídeos. G1, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/07/30/fogo-na-cinemateca-em-sp-veja-fotos-e-videos.ghtml. Acesso em: 23 de agosto de 2023.

FIDALGO, SABRINA. Incêndio na Cinemateca Brasileira é o retrato de um descaso criminoso. Vogue Brasil, 2021. Disponível em: https://vogue.globo.com/Vogue-Gente/noticia/2021/07/incendio-na-cinemateca-brasileira-e-o-retrato-do-descaso-criminoso.html. Acesso em: 23 de agosto de 2023.